quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Uma garrafa de uísque, um LP e um contrato

Há uma semana estava mergulhado naquele ambiente bucólico: um chalé no alto de uma colina perdido em uma região litorânea deslumbrante. Lá encontraria "paz, sossego e um pouco de inspiração". Palavras do seu editor.

Estava no seu segundo romance. O primeiro tinha saído sem sentir. Apenas deu asas à imaginação, mesclou alguns fatos cotidianos e só. Menos de dois anos depois se tornou um best seller. E cada capítulo, cada página, cada parágrafo fora produzido naquele cubículo em que morava no subúrbio. Nada dessas baboseiras de gaivota à beira-mar, paz interior. Foi lá, fez e ponto!

Mas agora estava ali, preso a toda aquela parafernália de escritor famoso: isolamento absoluto, uma máquina de escrever elétrica, milhares de folhas em branco e um contrato. Ah, o maldito contrato. Ele lembrava a cada minuto que de fato teria que produzir alguma coisa e isso, com toda certeza, era o motivo das primeiras noites mal dormidas.

Naquele dia, após o cair do sol, procurou executar o mesmo ritual dos últimos dias: respirou fundo, preparou um copo de uísque com duas pedras de gelo, deu uma, duas goladas bem dadas. Puxou a cadeira em frente a tal máquina... Mas a alvura do papel, aquelas teclas vazias, aquela brisa marítima o deixavam inseguro. Levantou, leu e releu suas anotações, seus rascunhos e voltou. Sorveu o resto do copo. Perdeu a paciência.

Mas que diabos! Sabia qual era o problema. Não precisava de concentração, de sensibilidade. Era um romance policial que aconteceria na cidade. Não precisava de grilo, sapinho, coruja! Queria sirenes, buzinas, multidão. Queria o pé-sujo da esquina! Tinha que estar inserido no contexto. Precisava do frenesi urbano.

Levantou-se e foi até a estante espiar os livros que haviam na casa para espairecer. Auto-ajuda, Paulo Coelho, Ernest Hemingway, Bukowski, mas uma penca de best Sellers que não eram seus... Encontrou uma coleção de LPs. Pescou um do Pink Floyd e colocou no toca-discos no volume mais alto que podia. Apesar de estar meio arranhado, a música surtiu um efeito adoravelmente calmante. Os primeiros acordes cortaram o silêncio de forma estridente. Aos poucos foi relaxando. O uísque também já fazia efeito. Voltou para máquina decidido.

Começou a dedilhá-la pelo simples prazer de escutar seu som. Quanto mais forte era o compasso da música, mais forte batia nas teclas. Aquele batucar compulsivo foi num crescente que já quase as espancava. O som ritmado, a mistura dos graves com os agudos..., toda aquela sonoridade epilética trazia a inspiração que realmente precisava. As idéias foram surgindo, fluindo. A noite foi passando... Repetiu as músicas até não poder mais. Perdeu mais uma noite de sono. Terminou a garrafa de uísque e o livro em menos de 12 horas.

André Tavares - Escutando Música Clássica

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