sábado, 18 de outubro de 2008

Poema 2



no tempo de Ilka

 
Levar o tempo a cada toque
no rosto nas mãos em um sorriso
No abraço mergulhar demorar-se nele
Sem medo segurar pelas linhas da mão
o corpo que o crepúsculo desfia
enquanto há luz para despedida
 
Guardar como paisagem o olhar
que cede pedindo um pouco mais
como se mais um pouco
pudesse ser ao mesmo tempo
um pedaço da eternidade
pois ainda que tarde ainda é
 
Fitar o instante
em que vagarosa a luz se rende
e em silêncio perceber




Alexandra

Poema 1


Um dia, eu enviarei contos. Hoje, dois poemas: amor e morte.


do amor: o primeiro
                          
                         “Creio que foi o sorriso,
                          o sorriso foi quem abriu a porta...”
                                            Eugénio de Andrade

Creio que foi o olhar
foi no olhar que me deitei
Um olhar tão claro que fazia bem
deitar nele uma vida toda
 
Naquele olhar
o mundo não entrava
e eu era inteira ausência de mim
 
Eu me quedava naquele olhar
sabida em não saber
- querer era ter -
coberta pelo lençol das pálpebras
Teus olhos, grama verde
 
Um olhar
que congelou o tempo
me grudou na estrada
ladrilhou as noites
 
Navegando em teus olhos
nos meus olhos verti
em gotas de um oceano
que secou em ti
 
...


Vão-se as paixões
Ficam os poemas a arder



Alexandra

Dentro

uma vastidão de apertar me espremia uma música que tocava e depois se repetia eu parada não me mexia muda não falava o espaço era sem-termo eu nem cabia
lá estava eu crescida pequena era uma estria a coisa ainda no começo eu como avesso o mundo inteiro me enchia faltava o meio o fim que tardecia
faltava eu fazer alguma coisa só pra começar o dia

c.

O dia bom de Catarina

Quando você mora num prédio de 22 andares com 90 apartamentos e, ao sair de casa, encontra o elevador à sua espera, percebe um sinal de boa vontade divina.

Só por isso, Catarina já sorriu. Era sexta feira, e sem que soubesse porque, acordara feliz.

A sorte lhe acenara ao despertar com o rádio escolhendo aleatoriamente uma música que ela adorava. Banho demorado, café caprichado, jornal inteiro, e trabalho, hoje não.

Escolheu tres filmes, recortou os horários, deu comida aos peixes, pensou em alguns amigos. Não. Hoje, sozinha. Suficiente? Jardim Botânico, talvez. Celular, nem pensar.

O elevador à espera lhe deu a certeza - sozinha.

 Quando você mora num prédio de 22 andares com 90 apartamentos e consegue descer do 17 até o subsolo direto, e sem ter que falar sobre o tempo com nenhum meio estranho que mora embaixo ou encima de você, é como ganhar um prêmio de loteria.

O velho carro não decepcionou. Meio tanque, pneus em dia, pegou de primeira. Som na caixa. Trânsito livre. Vaga certa. O mar, transparente.

A areia cheia de desconhecidas cangas coloridas. O cara da cerveja - o de sempre. Loura gelada e bico calado.

O homem na cadeirinha à frente - talvez grande demais para aquela cadeirinha - olha para ela sobre o jornal, assim como quem não olha. Incrível como depois dos 35, começou a reparar que os homens com mais de cinqüenta olham mais pra ela. Os de menos, olham menos. Como estava feliz, esse pensamento não a aborreceu.

Abruptamente, levantou e mergulhou. Oh! Deus, que prazer imenso é possível nesse ato tão banal, repetido tantas vezes ao longo da vida e nem sempre aproveitado. Estava feliz e por isso furou oito ondas seguidas antes de se estender na faixa de areia molhada atrapalhando o frescobol. Nem aí. A frente do corpo esquentava no sol, o mar vinha, gelava-lhe as costas, e ia. Ficou assim até sentir sede.

Andou até o calçadão toda molhada, areia grudando entre os dedos dos pés. No calçadão, pés livres da areia grudada com a ajuda da canga listrada de fitinhas do Bonfim.

E, como estava feliz, sentou de biquini mesmo na cadeira de um quiosque, voltada para o mar. A multidão, lá em baixo. Aqui, um chopp, por favor. Atrás dela, o trânsito comum às sextas feiras. Domingo particular.

Considerou como a vida era boa.

O tal homem (mais de sessenta?), agora na mesa ao lado, cadeira mais proporcional. Pensou nos homens que teve. Amorosos, sim. Canalhas, apenas o normal. Sinceros, na medida do possível. Covardes, só a metade. Mas, cafajestes, cafajestes, mesmo - nenhum. Até nisso tivera sorte.

Hoje estava, até, achando bom morar naquele prédio de 22 andares com 90 apartamentos, afinal, não permitiam animais no condomínio e nem tinha salão de festas. Não interessa, aqui, quanto tempo essa felicidade vai durar e o porquê de tamanha bem-aventurança. Nos cabe, como Catarina, aproveitar este dia, sem nada para reclamar.

Terceiro chopp e agora, já chega. Levantou e pagou a conta sob o olhar arrastado do tal homem ainda pregado na cadeira. Só viu pelo canto do olho. Hoje, não dar nenhuma chance.  

Bater perna no calçadão, escultura de areia, artesanato ruim. Com a cidade na mão num dia tão feliz, comer peixe no Leme. Foi de canga e se importando com as pessoas vestidas, coitadas, tanta gravata num sol daqueles. Água mineral. Sem gás. Molho escabeche, há quanto tempo...

Olhando o mar, agora de longe, e sol, hoje, não quer mais.

No elevador da subida, crianças agitadas. Criança é legal. Não as quer para si, mas assim, crianças dos outros e no tempo de um elevador... bacana.

Ducha fria, shampoo de mate verde para o corpo e os cabelos. Hoje, sem secador. Sem hidratante. Sem, nem, desodorante. Só quer o cheirinho do shampoo que remete a lugares úmidos e tranqüilos.

Depois, talvez... Clarice? Não, Clarice, hoje, não. Rubem Braga? É. Dia de crônicas, mais que de contos.  De costas pra janela para a luz incidir no texto já por si, iluminado. Até que só sobre a luz própria do livro e perceba que anoiteceu.

Fecha os olhos e agradece, sem nem saber a quem, pelo dia tão bom que teve.

E, como estava realmente feliz, lembrou do quanto o pai gostava de aletria e a mãe, de pão de ló.

 Vera

Navalha / Música africana

            Ela nascia no meio da cabeça, no cocuruto, e abria uma picada pelo cabelo, cortando caminho em direção à testa, onde fazia uma curva pequena e caminhava como uma cobra costurada na pele, passeando pelo olho esquerdo esbranquiçado. Logo abaixo, morria. Quando nasci, a cicatriz já existia e, se um dia eu visse o rosto do meu pai sem ela, acho que nem o reconheceria.

            Não sei que processo causou esse efeito, mas hoje em dia, homem para mim tem que ter cicatriz na cara. Foi por isso. Naquele dia, o Rogerinho estava tão próximo e amável, tão entregue, que quase desisti. Mas foi mais forte que eu. Angustiada, pedi desculpas já com a navalha na mão e fiz dele um homem de verdade.

 

 
Sobre música africana, acho importante citar o nigeriano Fela Kuti.
 
Para quem tem torrent: 
 
 

lua que estava pra ser cheia ...

fazia azul
como se a noite não soubesse

depois veio a madrugada

c.

Ha gente em casa?



traz para casa as conchas vivas da praia o vento escondido nas pegadas dos pássaros o teu rosto oriental incansável nas minhas mãos suadas em deliberada quietude
traz o excesso das unhas no arranhão encarnado de carne que tocas em busca de um grito
quero-te aqui como se fosses trepadeira acesa ou ruído rotineiro. quero-te como se fosses perto outra vez.
 
 
traz o teu corpo para casa.



:::

Madrugada quase...



fazia escuro
como se fosse madrugada

depois houve o azul



O.

Lamento ao Garçom

Uma homenagem aos que tem os pés ensaboados a 1 da manhã


  1. Garçom, o bar vai fechar e carioca depois das dez não tem relógio. Eu sei, Garçom. A patroa tá te esperando, o patrão tá de cara feia, depois da quinta saideira o cliente quer fazer amizade, teus pés já incharam, tudo isso é verdade. Mas Garçom, não joga água com omo assim que vai estragar as minhas sandálias, Garçom. A gente não tem tanta intimidade.
  2. Garçom, eu sei que quem te paga o pão é o alcoolismo da minha geração, mas veja bem, não precisa sair trocando a tulipa no meio, sempre com colarinho, o copo cheio, que a gente vai perdendo a conta e a concentração. Fica tranqüilo que na hora de fechar a gente paga os 219 chopps que você cobrar. Mas, hein, garçom, deixa com a gente a iniciativa de se embriagar.
  3. Garçom, eu tenho um negócio contigo, uma ternura de alma, um troço de olhar nos olhos, uma coisa como que de coração. Mas olha só, Garçom, não me pede assim, no meio do expediente pra mudar de mesa, que meus ânimos já se acomodaram, não tenho tanta destreza. Logo eu, Garçom? Só porque um grupo de 8 vai chegar? Não, Garçom, meu grupo é de um mas eu costumo demorar.
  4. Garçom, muitos rostos para decorar, entendo. Mas por favor, sorria quando me vir chegar. Seria bom poder pedir o de sempre, a gente freguês sente, Garçom. Juro que na hora da gorjeta teu elogio vai estar lá.
  5. Garçom, só mais uma coisa... no final, Garçom, faz-de-conta que você não me viu sair daqui tonta que daqui a pouco o sol desponta e o pessoal pode falar.
C.

 

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Trio estranho: Mariana, Seal e Lovecraft

Bom, o Seal realmente é filho de brasileiro (com nigeriana) e sua cicatriz é simplesmente lupus (aquilo de que o Dr. House vive falando).

Vocês podem baixar aqui a quinta carta de Mariana Alcoforado. Aproveito para sugerir fortemente o livro sobre ela e suas cartas.

Também mando uma referência rápida sobre Lovecraft.

Fico devendo as músicas africanas, ainda não descobri como disponibilizá-las no blog.

abraços apalpáveis

Julio

2 Contos curto

Recaída

Fui novamente beijar sua boca e sentir seu cheiro. Dormi com ele.
Acordei sem rumo, sem bússola, sem mim.
Mas, novamente quente, viva.


Premonição
A aranha acordou sobressaltada,
sua teia, tecida com tanto esmero na noite anterior,
estava irremediavelmente arrebentada.

Monica

Fwd: Um conto - Uma rosa como tantas autora Monica Costa

Uma rosa como tantas

Outubro de 2007. Faz um calor abafado na periferia de São Paulo. São
7:30 da manhã e o calor, misturado ao ar poluído, dão a sensação de
dia já começado há muito tempo e de cansaço. As pessoas caminham sem
muito ânimo para mais um dia de trabalho, os trens estão lotados. É
uma viela de casas pobres, geminadas, algumas divididas em terreo e
sobrado.

Rosa sobe as escadas do sobrado de tijolos, sem emboço com
dificuldade, suas coxas e mãos estão ensanguentadas. Dentro da casa de
costas para a porta, está Marcelle tomando café em pé junto a pia.
Rosa senta pesadamente sobre o sofá na entrada.

--- Joguei meu filho no rio.
--- Mas o que é isso, Rosa ?! Cadê o menino ?! Fala a verdade ?!
---Já falei..tá no rio. A cabeça de Rosa pende para trás e ela fecha
os olhos momentaneamente.

Marcelle sacode Rosa pelos ombros e grita.

--- Vamos lá! Você é doida ?! Me mostra onde foi! E sem esperar
resposta sai correndo pela escadas, seguindo em disparada pela viela
em direção a rua.

Rosa continua muda, inerte, esparramada sobre o sofá gasto e rasgado.

Chega a outra prima na sala.

Que houve Rosa ? Voce tá ensanguentada! Tá sujando tudo! Levanta do
sofá, Rosa! Você perdeu o bebe?

Vem, senta aqui. E estende para ela um banco de fórmica.

Estavam as duas sozinhas naquela cozinha-sala, onde sofá, pia, fogão e
mesa de fórmica compartilham o mesmo espaço. O sol da manhã já
esquentava o ambiente e trazia para dentro aquele cheiro fétido do
valão que passa ao lado da casa.

Rosa senta-se no banco e continua sua história falando agitadamente.

--- Eu pari um menino e assim que ele saiu de dentro de mim, eu joguei
no rio. Pronto. Foi isso e você não precisa sair correndo, porque tua
irmã já foi, Rosa continuou.

Eu não queria o menino e eu não sou cachorro nem gato pra sair por aí
dando filho. Assim, acabou. Minha vida continua daqui.

--- Mas que é isso Rosa ? Como você conseguiu fazer isso ?

--- Eu num programei, nem consegui. Só fiz. Assim, de um impulso. FIZ.
Um monte de gente, não tira filho? Eu só tenho 17 anos...Eu táva no
maior bom com o Wanderson e aí pintou o filho. No começo eu gostei.
Pensei em me aquietar com o Wanderson, montar casa, criar família que
nem tua mãe fez. Aí, ele começou a se desinteressar ... Você sabe como
é. No começo eles gostam. Peito grande, bunda grande, mas depois o
barrigão fica maior que tudo. O Wanderson começou a procurar outras.
Ele não me falou nada, nem eu vi, mas a Nathalia da viela 8 me falou
que viu ele saindo com a Samira e depois com a Suzane loura. Fiquei
puta, mas não falei nada e aí comecei aqueles cursinhos naquela ONG
perto do posto de saúde. Aí mesmo é que acho que piorei... Aquela
conversinha de filho pra cá e filho prá lá e umas mulheres velhas
tratando a gente como se a gente fosse retardada. Ensinando o que a
gente deve comer para ter um filho saudável, que não pode dançar
demais, não pode beber... Aquela conversa me dava enjôo. Era só eu
entrar lá para o enjôo piorar. Tinha vontade de gritar e sair de lá
correndo, mas nunca, nunca pensei em jogar ele fora..

Agora, Rosa titubeia pela primeira vez em seu discurso, até então
firme e racional, seus olhos enchem d'àgua e a voz começa a embargar.
Mas ela continua e lentamente começa a expor sua alma.

--- Mas também não pensei em continuar minha vida com filho... Como é
que eu ia continuar? Morando aqui, na tua casa onde mal cabe eu ? E o
meu curso de computação ? Ia ter que esquecer...Como é que eu ia dar
conta das faxinas e do curso? Eu ia acabar que nem todas essas aí
...Filho é bom pra quem pode, não era para mim, não agora. Eu quero é
sair daqui, mudar de vida, ser garçonete no exterior, que nem minha
mãe, que nunca mais voltou.

--- Nessa madrugada, quando comecei a sentir que ele ia sair de dentro
de mim, não falei nada. Peguei uma tesoura e fui até a beira desse
riacho imundo. Precisava ficar só e foi aí que pensei, só aí que eu
pensei, em deixá-lo ir. Assim como veio, vou deixá-lo ir. Pensei que
sem médico, sem nada, ele nem chorasse ou já nascesse morto, sei lá...
Mas, quando ele saiu de dentro de mim me rasgando inteira, senti uma
dor tamanha e ouvi o choro dele... Já ia pegar ele no colo, mas aí eu
nunca largaria. Mãe que é mãe não larga filho. Eu quero ser uma boa
mãe. Aí, só aí eu pensei no rio. Cortei o cordão e botei ele lá.
Deixei o rio segurá-lo e embalá-lo, bem de mansinho...

Só eu é que podia mudar minha vida...Só eu...é horrível. É horrível ?
Também acho que é, largar um bebe naquele rio imundo...Mas botar mais
um largado aí no mundo...Saí correndo de lá, nem sei que fim levou...

Rosa suspira e volta a falar mais lentamente.

--- É melhor eu consertar primeiro a minha vida e depois pensar em
trazer outra pro mundo. Sei que eu estava certa. Era o que tinha que
ser. Mas só não entendo porque esse buraco dentro de mim, esse
desepero, esse choro idiota que teima em chorar. Queria o meu filho
nos meus braços, mas não não quero essa vida para ele, não é melhor
ele vir depois.

É assim que tinha que ser, Rosa é assim que tinha que ser. Rosa,
repete a frase para si mesma num discurso sofrido e absolutamente
solitário.

Rosa esfrega os olhos com força com um braço, depois com o outro, até
começar novamente a chorar, dessa vez convulsivamente. Rosa se levanta
de rompante.

O que foi que eu fiz ? Joguei um pedaço de mim fora! Quero ver meu
filho! Quero meu filho. Rosa desce as escadas desesperada em direção a
rua.

Monica

Papo de Van

O som rolava alto no mp3:

"Nada nessa vida é em vão, pense no vão dessa canção..." E dalhe solo de guitarra.

Ninguém o incomodava. Mas vez por outra baixava o som para pescar algum papo interessante. Afinal, escutava aquelas músicas diariamente.

"Tri, tri. É leque, essa é a parada, vô pega essa mina de jeito e...." Um playboy falava ao nextel para quem quisesse ouvir.

Não, sem sombra de dúvidas, aumentar o som era a melhor opção.

"... e não diga que ela foi feita em vão!"

Pouco tempo depois, apurando melhor os sentidos, deu para perceber que ali do lado, uma menina de seus 25 anos, rechonchuda, poderia lhe dar o passatempo daquela viagem pelas engarrafadas ruas do Rio. Buscava mais um capítulo da novela da vida real.

Baixou o volume.

"Mas Bê, tá atrasado. Tô esquisita. E se..."

Bãmmmm! O carro detrás enfiou a mão na buzina e iniciou um coro estridente: Bã, bã, bã, bãmmmm!

Desgraçado. E se... Como assim? Queria saber mais.

"Mas Bê, não sei... A gente fez isso junto, você tem que me ajudar."

Sim, estava começando a ficar claro. Era um daqueles capítulos decisivos. Baixou mais um pouco o som. Continuava com o fone apenas para disfarçar, mas na verdade a sua audição captava coisas bem mais interessantes do que aqueles velhos e conhecidos acordes.

A menina começou a chorar, baixando o tom de voz:

"Acho que vô tirar. Não tem jeito... Que, tá louco! Tem dinheiro pra isso não. É só tomar um copo de Coca-Cola com..."

Bãmmmmmmm! Mais outra barbeiragem do piloto.

"Mas..." Desatou a chorar.

Percebeu que ali ao seu lado acabava de ser julgado um indivíduo que ainda nem nascera. Que nem ao menos havia tido uma chance de se defender. Era fato consumado: aquela criança não viria ao mundo.

Como o ser humano poderia ser capaz de tamanha brutalidade?

A turbulência do trânsito, o som, as pessoas indo e vindo na rua... Todos estavam indiferentes àquela notícia aterradora. Nem tinham conhecimento. A vida seguia sem pausa. Sem dó.

Tentou aumentar o som para se livrar daquele sentimentalismo efêmero. Também queria continuar ignorando. O aparelho indicou: low batt. Droga. Seria obrigado a pensar insistentemente naquilo até o resto da viagem.



                                                                      :: André Tavares ::

Queridos Desconhecidos

Em menos de meia hora estavam íntimos. Tudo que sabiam um do outro ia até a primeira página. Ela, divorciada aos 25. Ele, pai solteiro aos 26.

Tudo fora rápido. Uma troca de olhares antes de começar o filme. Um esbarrão, uma súbita impressão de que se conheciam de algum lugar.

Ela, corou e sorriu embaraçada. Ele, tímido, apenas balbuciou um pedido de desculpas. Coincidentemente iam para o mesmo lugar: tomar um espresso na bomboniere da livraria ao lado. Caminharam lado a lado por alguns instantes até ensaiarem um diálogo. Tudo muito superficial, alguns comentários sobre o filme, previsão do tempo...

Primeiro gole de café e um sorriso se estampou no rosto dela. Lembrou de uma cena hilária. Ele, impressionado, só conseguia reparar na sua boca. Aqueles lábios rubros, carnudos, faziam um conjunto perfeito com o seu nariz e seus olhos.

Ela percebeu e trocou de assunto. Tentou lembrar de onde se conheciam. Amigos em comum? Faculdade, praia? Amigo do ex? Não, não queria lembrar daquele canalha agora. O desconhecido era lindo. Aquele olhar de cachorro pidão a seduzia. A situação a envolvia.

O café acabou com aquele gosto amargo. O assunto também já estava chegando ao fim. Só restou um petit four no pires e um sorriso já sem graça. Ele pegou na sua mão, se aproximou. Os corações descompassaram, o sangue pulsou mais forte. Ela tentou disfarçar. Desviou o olhar. Não era daquelas. Tinha que resistir. Não poderia se entregar a um estranho. Não, não pode... Sentiu no lábio molhado o sabor de um beijo roubado. Ficou sem ação.

A noite estrelada tornou-se palco de uma paixão momentânea. Cúmplice de dois amantes que se entregavam aos prazeres da carne.

Um beijo de despedida. Nenhum número.

Qual era mesmo seu nome?
André Tavares

Curtos e curtíssimos

Estava sem cigarros. Saiu pela mesma porta que entrou quando se conheceram e nunca mais voltou.

..................
 

Tal qual uma besta selvagem, criou-se involuntariamente. Nasceu e cresceu. Se alimentou das minhas fraquezas..., das minhas incertezas... Chegou sem ser convidada. Foi estúpida, seca e vazia. Não teve porquê. Apenas veio e explodiu.

.................

Meu esconderijo

Ela esconde as minhas cartas de amor, guarda meus sentimentos, alimenta os meus desejos. Sua loucura incompreensível me fascina. Seu corpo nu, rígido, dá prazer à curiosidade das minhas mãos. Sempre que se abre, sinto que ainda há um mundo a descobrir. É só minha. Minha pequena. Tranco a sete chaves e não deixo ninguém entrar.

................

A boca rachada pelo sol, o vinco das bochechas, aquele sorriso amarelo... Nariz e orelhas alongadas pelo tempo, o olhar perdido em alguma esperança do passado. As mãos calejadas, o cabelo loiro, opaco, ressequido. Talvez em outro tempo, em outro lugar, aquela senhora de expressão tão severa pudesse ter sido miss.

...............

O vestido estampado, o batom na boca já rachada pelo tempo. Tinha perdido o corpo da juventude, a elasticidade da pele, mas não a vaidade.

 

André Tavares

Seguimos caminhando juntos.
Você, com seu vestido de motivos florais.
Eu, sem motivo nenhum.
 
Cris
(Inspirado nos motivos africanos da Carolina...)
Um dia ainda sumo da sua vida! E sabe o que é pior?
Você não vai nem notar...

E alguns nomes de musicos interessantes...



Cesária évora (cabo verde)
Waldemar bastos (angola)
Paulo flores (angola)
Tcheka (cabo verde)
Kafala Brothers (angola)
Mc K (angola)
Leonardo Wawuti (angola)
Keyta Mayanda (angola)
Conjunto Ngongwenha (angola)
Tabanka Djaz (guiné bissau)
Carlos Burity (angola)
Lura (cabo verde)


Entre outros (ainda africanos):

Saif Keita
Youssou Ndour
Geoffrey Oryema
Ali Farka Touré
Ismael Lo
Afel bocoum



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De outras latitudes, para quem não conhece, convém espreitar:

Wim Mertens
Keith Jarrett


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quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Sobre músicas & contos



Do conto “a libélula”:


Um som fluido abandonava a casa, roçava na poeira das trepadeiras no jardim, influenciava as mangas e os mamões no seu processo de maturação, arrepiava uma libélula inebriada que ali adormecera, fazia o sol abrandar e chegava, ainda forte, ainda nítido, ao ouvido da mulher. Depois disto, um sorriso.

Na aparelhagem o som acontecia contínuo, ininterrupto. O doutor solidificara este hábito domingueiro: sentar-se no fresco da sua varanda ouvindo, durante extensos momentos, a voz de Adriana Calcanhoto. Ora dormitava, ora lia, ora escrevia, ora se quedava simplesmente de olhos rasgados contemplando as nuvens gordas azularem o céu. Para ele não se tratava de beatificar um domingo, mas sim a própria paz. Aliás, «domingo» era, para o doutor, uma palavra muito interna. Fosse um poço.

Pressentindo isto – que o doutor se apresentava em pleno estado de domingo –, a mulher hesitou. Encostou a testa ao ferro do portão e quis acreditar no impossível: que não tinha sede. A testa latejava; os olhos se queriam, de facto, fechar, olvidar o mundo, cessar a prestação de serviços visuais. O frio do portão trouxe-lhe agrado aos dedos, ao coração também. A música invadia-lhe os poros. Então, aí sim, ela partilhou uma sensação com o doutor. Ele, no mesmo instante pensava:
esta voz pode ser dividida. A voz de Adriana, empurrando a tarde: «será que a gente é louca, ou lúcida... quando quer que tudo vire música».

[...]
A mulher pousou o copo, respirou fundo.

Sabe porquê que pedi água aqui na sua casa?
Não.
Por causa da música... Esta voz tão doce.
Adriana.
Como?
Adriana Calcanhoto, cantora brasileira.
É poeta?
Também.
Não... O senhor. O senhor é poeta?
Ah, eu! Não, sou médico. E a senhora?
Eu estou cá de férias.

A libélula progrediu no terreno. Finalmente mexeu-se, mas caminhando.

Na expressão de ambos era visível o espanto de duas crianças que atentas e boquiabertas assistissem, de repente, ao movimento gracioso de uma pedra. A libélula caminhou em direcção ao objecto. Num breve sacudir de asas saltou e voltou a estar quieta – uma guerreira demarcando o território conquistado.
«E a greve entre as estrelas só para mim», a cantora progredia na varanda, na tarde.

O objecto era uma espessa redoma de vidro, certamente cara, que protegia uma pedra minúscula, cinzenta, banal. Uma pedra pequenina, era o máximo que se poderia dizer. Nem graciosa, nem peculiar, nem mesmo exótica ou atraente. Era uma pedra brutalmente vulgar. A instalação, contudo, valorizava a pedra.


[ondjaki, in “e se amanhã o medo”, contos, 2005]


De raduan nassar


o quarto estava escuro, era talvez a hora em que as mães embalam os filhos, soprando-lhes ternas fantasias; mas lá fora ainda era dia, era um fim de tarde cheio de brandura, era um céu tenro todo feito de um rosa dúbio e vagaroso; caí pensando nessa hora tranquila em que os rebanhos procuram o poço e os pássaros derradeiros buscam o seu pouso; e pensei também que eu poderia, se me debruçasse na janela, ver as nuvens esgarçadas se deslocando pacientemente como as barbas de um ancião, até que no céu uma suave concha escura apagasse o dia (...).

  

Raduan Nassar, Lavoura Arcaica.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Camelo Urbanóide Valentão


- Que calor! Que sede! Não agüento mais...
- Pois é, valentão... bem-vindo ao deserto.
- Quanto tempo falta, hein?
- Tá vendo aquela cadeia de montanhas lá no final? Acho que depois dela tem uma cidade.
- Então, boa sorte.


por José Dantas / Zé McGill


(aproveito para divulgar o meu BLOG, a Revista Foda-se.


Exercicio dialogos...



– Olá josé, tudo bem?
– Tudo bem? Como assim, tudo bem? Estou à tua espera neste calor há meia hora
– Desculpa, tá um trânsito louco hoje.
– E como sempre, com trânsito ou não, chegas atrasada... Fazes de propósito?

–Calma josé... Tamos na praia, podemos encontrar uma sombra, tomar banho...
–Tomar banho nesta enchente? Demoraste tanto que a praia está impossível

– Calma josé...
– Calma, calma... – José pareceu enfraquecer o tom de voz. – Pareces um disco riscado – e tremia como se fosse chorar.
– José... Diz-me a verdade –pegou na mão dele. – O que houve contigo?


segunda-feira, 13 de outubro de 2008

De quem é?

Menina brincava no córrego que passava em frente à casa da avó. Nos seus cincos anos de idade aquilo era o mar. Da janela, a vizinha preocupada observava a cena.
- Menina, sai dessa lama!
Menina nem ligava.
- Menina, sai dessa lama!
Menina olha com a autoridade daqueles que possuem o mundo e questiona:
- Por acaso, a lama é sua?
Nane

Conto curto

"No armário um terno feito de pura ausência e distância made in China, diz o quanto ele ainda é presente.
 Na gaveta, o vestido, amarrotado de saudade, espera que ele venha no verão."
 
 Nane Rodrigues

Um conto - Uma rosa como tantas autora Monica Costa