Outubro de 2007. Faz um calor abafado na periferia de São Paulo. São
7:30 da manhã e o calor, misturado ao ar poluído, dão a sensação de
dia já começado há muito tempo e de cansaço. As pessoas caminham sem
muito ânimo para mais um dia de trabalho, os trens estão lotados. É
uma viela de casas pobres, geminadas, algumas divididas em terreo e
sobrado.
Rosa sobe as escadas do sobrado de tijolos, sem emboço com
dificuldade, suas coxas e mãos estão ensanguentadas. Dentro da casa de
costas para a porta, está Marcelle tomando café em pé junto a pia.
Rosa senta pesadamente sobre o sofá na entrada.
--- Joguei meu filho no rio.
--- Mas o que é isso, Rosa ?! Cadê o menino ?! Fala a verdade ?!
---Já falei..tá no rio. A cabeça de Rosa pende para trás e ela fecha
os olhos momentaneamente.
Marcelle sacode Rosa pelos ombros e grita.
--- Vamos lá! Você é doida ?! Me mostra onde foi! E sem esperar
resposta sai correndo pela escadas, seguindo em disparada pela viela
em direção a rua.
Rosa continua muda, inerte, esparramada sobre o sofá gasto e rasgado.
Chega a outra prima na sala.
Que houve Rosa ? Voce tá ensanguentada! Tá sujando tudo! Levanta do
sofá, Rosa! Você perdeu o bebe?
Vem, senta aqui. E estende para ela um banco de fórmica.
Estavam as duas sozinhas naquela cozinha-sala, onde sofá, pia, fogão e
mesa de fórmica compartilham o mesmo espaço. O sol da manhã já
esquentava o ambiente e trazia para dentro aquele cheiro fétido do
valão que passa ao lado da casa.
Rosa senta-se no banco e continua sua história falando agitadamente.
--- Eu pari um menino e assim que ele saiu de dentro de mim, eu joguei
no rio. Pronto. Foi isso e você não precisa sair correndo, porque tua
irmã já foi, Rosa continuou.
Eu não queria o menino e eu não sou cachorro nem gato pra sair por aí
dando filho. Assim, acabou. Minha vida continua daqui.
--- Mas que é isso Rosa ? Como você conseguiu fazer isso ?
--- Eu num programei, nem consegui. Só fiz. Assim, de um impulso. FIZ.
Um monte de gente, não tira filho? Eu só tenho 17 anos...Eu táva no
maior bom com o Wanderson e aí pintou o filho. No começo eu gostei.
Pensei em me aquietar com o Wanderson, montar casa, criar família que
nem tua mãe fez. Aí, ele começou a se desinteressar ... Você sabe como
é. No começo eles gostam. Peito grande, bunda grande, mas depois o
barrigão fica maior que tudo. O Wanderson começou a procurar outras.
Ele não me falou nada, nem eu vi, mas a Nathalia da viela 8 me falou
que viu ele saindo com a Samira e depois com a Suzane loura. Fiquei
puta, mas não falei nada e aí comecei aqueles cursinhos naquela ONG
perto do posto de saúde. Aí mesmo é que acho que piorei... Aquela
conversinha de filho pra cá e filho prá lá e umas mulheres velhas
tratando a gente como se a gente fosse retardada. Ensinando o que a
gente deve comer para ter um filho saudável, que não pode dançar
demais, não pode beber... Aquela conversa me dava enjôo. Era só eu
entrar lá para o enjôo piorar. Tinha vontade de gritar e sair de lá
correndo, mas nunca, nunca pensei em jogar ele fora..
Agora, Rosa titubeia pela primeira vez em seu discurso, até então
firme e racional, seus olhos enchem d'àgua e a voz começa a embargar.
Mas ela continua e lentamente começa a expor sua alma.
--- Mas também não pensei em continuar minha vida com filho... Como é
que eu ia continuar? Morando aqui, na tua casa onde mal cabe eu ? E o
meu curso de computação ? Ia ter que esquecer...Como é que eu ia dar
conta das faxinas e do curso? Eu ia acabar que nem todas essas aí
...Filho é bom pra quem pode, não era para mim, não agora. Eu quero é
sair daqui, mudar de vida, ser garçonete no exterior, que nem minha
mãe, que nunca mais voltou.
--- Nessa madrugada, quando comecei a sentir que ele ia sair de dentro
de mim, não falei nada. Peguei uma tesoura e fui até a beira desse
riacho imundo. Precisava ficar só e foi aí que pensei, só aí que eu
pensei, em deixá-lo ir. Assim como veio, vou deixá-lo ir. Pensei que
sem médico, sem nada, ele nem chorasse ou já nascesse morto, sei lá...
Mas, quando ele saiu de dentro de mim me rasgando inteira, senti uma
dor tamanha e ouvi o choro dele... Já ia pegar ele no colo, mas aí eu
nunca largaria. Mãe que é mãe não larga filho. Eu quero ser uma boa
mãe. Aí, só aí eu pensei no rio. Cortei o cordão e botei ele lá.
Deixei o rio segurá-lo e embalá-lo, bem de mansinho...
Só eu é que podia mudar minha vida...Só eu...é horrível. É horrível ?
Também acho que é, largar um bebe naquele rio imundo...Mas botar mais
um largado aí no mundo...Saí correndo de lá, nem sei que fim levou...
Rosa suspira e volta a falar mais lentamente.
--- É melhor eu consertar primeiro a minha vida e depois pensar em
trazer outra pro mundo. Sei que eu estava certa. Era o que tinha que
ser. Mas só não entendo porque esse buraco dentro de mim, esse
desepero, esse choro idiota que teima em chorar. Queria o meu filho
nos meus braços, mas não não quero essa vida para ele, não é melhor
ele vir depois.
É assim que tinha que ser, Rosa é assim que tinha que ser. Rosa,
repete a frase para si mesma num discurso sofrido e absolutamente
solitário.
Rosa esfrega os olhos com força com um braço, depois com o outro, até
começar novamente a chorar, dessa vez convulsivamente. Rosa se levanta
de rompante.
O que foi que eu fiz ? Joguei um pedaço de mim fora! Quero ver meu
filho! Quero meu filho. Rosa desce as escadas desesperada em direção a
rua.
Monica
Nenhum comentário:
Postar um comentário