quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Sobre músicas & contos



Do conto “a libélula”:


Um som fluido abandonava a casa, roçava na poeira das trepadeiras no jardim, influenciava as mangas e os mamões no seu processo de maturação, arrepiava uma libélula inebriada que ali adormecera, fazia o sol abrandar e chegava, ainda forte, ainda nítido, ao ouvido da mulher. Depois disto, um sorriso.

Na aparelhagem o som acontecia contínuo, ininterrupto. O doutor solidificara este hábito domingueiro: sentar-se no fresco da sua varanda ouvindo, durante extensos momentos, a voz de Adriana Calcanhoto. Ora dormitava, ora lia, ora escrevia, ora se quedava simplesmente de olhos rasgados contemplando as nuvens gordas azularem o céu. Para ele não se tratava de beatificar um domingo, mas sim a própria paz. Aliás, «domingo» era, para o doutor, uma palavra muito interna. Fosse um poço.

Pressentindo isto – que o doutor se apresentava em pleno estado de domingo –, a mulher hesitou. Encostou a testa ao ferro do portão e quis acreditar no impossível: que não tinha sede. A testa latejava; os olhos se queriam, de facto, fechar, olvidar o mundo, cessar a prestação de serviços visuais. O frio do portão trouxe-lhe agrado aos dedos, ao coração também. A música invadia-lhe os poros. Então, aí sim, ela partilhou uma sensação com o doutor. Ele, no mesmo instante pensava:
esta voz pode ser dividida. A voz de Adriana, empurrando a tarde: «será que a gente é louca, ou lúcida... quando quer que tudo vire música».

[...]
A mulher pousou o copo, respirou fundo.

Sabe porquê que pedi água aqui na sua casa?
Não.
Por causa da música... Esta voz tão doce.
Adriana.
Como?
Adriana Calcanhoto, cantora brasileira.
É poeta?
Também.
Não... O senhor. O senhor é poeta?
Ah, eu! Não, sou médico. E a senhora?
Eu estou cá de férias.

A libélula progrediu no terreno. Finalmente mexeu-se, mas caminhando.

Na expressão de ambos era visível o espanto de duas crianças que atentas e boquiabertas assistissem, de repente, ao movimento gracioso de uma pedra. A libélula caminhou em direcção ao objecto. Num breve sacudir de asas saltou e voltou a estar quieta – uma guerreira demarcando o território conquistado.
«E a greve entre as estrelas só para mim», a cantora progredia na varanda, na tarde.

O objecto era uma espessa redoma de vidro, certamente cara, que protegia uma pedra minúscula, cinzenta, banal. Uma pedra pequenina, era o máximo que se poderia dizer. Nem graciosa, nem peculiar, nem mesmo exótica ou atraente. Era uma pedra brutalmente vulgar. A instalação, contudo, valorizava a pedra.


[ondjaki, in “e se amanhã o medo”, contos, 2005]


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