sábado, 18 de outubro de 2008

O dia bom de Catarina

Quando você mora num prédio de 22 andares com 90 apartamentos e, ao sair de casa, encontra o elevador à sua espera, percebe um sinal de boa vontade divina.

Só por isso, Catarina já sorriu. Era sexta feira, e sem que soubesse porque, acordara feliz.

A sorte lhe acenara ao despertar com o rádio escolhendo aleatoriamente uma música que ela adorava. Banho demorado, café caprichado, jornal inteiro, e trabalho, hoje não.

Escolheu tres filmes, recortou os horários, deu comida aos peixes, pensou em alguns amigos. Não. Hoje, sozinha. Suficiente? Jardim Botânico, talvez. Celular, nem pensar.

O elevador à espera lhe deu a certeza - sozinha.

 Quando você mora num prédio de 22 andares com 90 apartamentos e consegue descer do 17 até o subsolo direto, e sem ter que falar sobre o tempo com nenhum meio estranho que mora embaixo ou encima de você, é como ganhar um prêmio de loteria.

O velho carro não decepcionou. Meio tanque, pneus em dia, pegou de primeira. Som na caixa. Trânsito livre. Vaga certa. O mar, transparente.

A areia cheia de desconhecidas cangas coloridas. O cara da cerveja - o de sempre. Loura gelada e bico calado.

O homem na cadeirinha à frente - talvez grande demais para aquela cadeirinha - olha para ela sobre o jornal, assim como quem não olha. Incrível como depois dos 35, começou a reparar que os homens com mais de cinqüenta olham mais pra ela. Os de menos, olham menos. Como estava feliz, esse pensamento não a aborreceu.

Abruptamente, levantou e mergulhou. Oh! Deus, que prazer imenso é possível nesse ato tão banal, repetido tantas vezes ao longo da vida e nem sempre aproveitado. Estava feliz e por isso furou oito ondas seguidas antes de se estender na faixa de areia molhada atrapalhando o frescobol. Nem aí. A frente do corpo esquentava no sol, o mar vinha, gelava-lhe as costas, e ia. Ficou assim até sentir sede.

Andou até o calçadão toda molhada, areia grudando entre os dedos dos pés. No calçadão, pés livres da areia grudada com a ajuda da canga listrada de fitinhas do Bonfim.

E, como estava feliz, sentou de biquini mesmo na cadeira de um quiosque, voltada para o mar. A multidão, lá em baixo. Aqui, um chopp, por favor. Atrás dela, o trânsito comum às sextas feiras. Domingo particular.

Considerou como a vida era boa.

O tal homem (mais de sessenta?), agora na mesa ao lado, cadeira mais proporcional. Pensou nos homens que teve. Amorosos, sim. Canalhas, apenas o normal. Sinceros, na medida do possível. Covardes, só a metade. Mas, cafajestes, cafajestes, mesmo - nenhum. Até nisso tivera sorte.

Hoje estava, até, achando bom morar naquele prédio de 22 andares com 90 apartamentos, afinal, não permitiam animais no condomínio e nem tinha salão de festas. Não interessa, aqui, quanto tempo essa felicidade vai durar e o porquê de tamanha bem-aventurança. Nos cabe, como Catarina, aproveitar este dia, sem nada para reclamar.

Terceiro chopp e agora, já chega. Levantou e pagou a conta sob o olhar arrastado do tal homem ainda pregado na cadeira. Só viu pelo canto do olho. Hoje, não dar nenhuma chance.  

Bater perna no calçadão, escultura de areia, artesanato ruim. Com a cidade na mão num dia tão feliz, comer peixe no Leme. Foi de canga e se importando com as pessoas vestidas, coitadas, tanta gravata num sol daqueles. Água mineral. Sem gás. Molho escabeche, há quanto tempo...

Olhando o mar, agora de longe, e sol, hoje, não quer mais.

No elevador da subida, crianças agitadas. Criança é legal. Não as quer para si, mas assim, crianças dos outros e no tempo de um elevador... bacana.

Ducha fria, shampoo de mate verde para o corpo e os cabelos. Hoje, sem secador. Sem hidratante. Sem, nem, desodorante. Só quer o cheirinho do shampoo que remete a lugares úmidos e tranqüilos.

Depois, talvez... Clarice? Não, Clarice, hoje, não. Rubem Braga? É. Dia de crônicas, mais que de contos.  De costas pra janela para a luz incidir no texto já por si, iluminado. Até que só sobre a luz própria do livro e perceba que anoiteceu.

Fecha os olhos e agradece, sem nem saber a quem, pelo dia tão bom que teve.

E, como estava realmente feliz, lembrou do quanto o pai gostava de aletria e a mãe, de pão de ló.

 Vera

2 comentários:

Anônimo disse...

Como a vida pode ser tão simples e tão boa. Gostei muito, Vera... especialmente o sutil e delicado "final".

Unknown disse...

Gosto muito do seu estilo de escrever. A valorização do cotidiano, do simples...da vida.
Muito bom, ainda quero ler seus contos num livro publicado !!Monica